terça-feira, 23 de junho de 2009

VYGOTSKY E A PRÉ-HISTÓRIA DA LINGUAGEM ESCRITA NA CRIANÇA

Josenildo Silva de Souza1
RESUMO

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a concepção de Vygotsky a respeito da linguagem escrita. Vygotsky trouxe para a psicologia e pedagogia, uma nova maneira de conceber a questão da linguagem nos seus mais diversos aspectos. O texto é constituído por três tópicos: o primeiro trata da preocupação de Vygotsky com a educação; o segundo, da questão da linguagem como constituidora do sujeito e, por fim, da sua concepção a respeito da “pré-história da linguagem escrita” que representa a concepção das crianças sobre o sistema de escrita antes de entrarem no processo de alfabetização. Esse artigo pode servir de instrumento para professores da Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental pensarem a questão da leitura e da escrita.

Palavras-chave: Vygotsky; linguagem; linguagem escrita

VYGOTSKY E A EDUCAÇÃO

A trajetória intelectual de Vygotsky se deu no contexto da Rússia a partir da Revolução de 1917. Esse contexto lhe forneceu o cenário inicial e as questões principais para suas teorias, a produção de suas idéias centrais e contribuições para a Psicologia e Pedagogia.

Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 17 de novembro de 1896 em Orsha, uma pequena cidade provinciana, na Bielo-Rússia. Sua família, de origem judaica, propiciava um ambiente desafiador em termos intelectuais. Até os 15 anos, sua educação processou-se em casa, através de tutores particulares. Gostava de literatura e assuntos relacionados às artes em geral. Aos 17 anos completou o curso secundário, num colégio privado em Gomel. Nesta ocasião recebeu medalha de ouro pelo seu desempenho. De 1914 a 1917 estudou Direito e Literatura, na Universidade de Moscou. Nesse mesmo período também participava, na Universidade Popular de Shanyavskii, de cursos de História e Filosofia.

Anos mais tarde, cresceu seu interesse em compreender o desenvolvimento psicológico do ser humano, e, particularmente, as anomalias físicas e mentais. Isso fez com que entrasse na Faculdade de Medicina. Seu percurso acadêmico, marcado pela interdisciplinaridade, transitou por diversos assuntos, desde artes, literatura, lingüística, antropologia, cultura, ciências sociais, psicologia, filosofia e medicina. No período de 1917 a 1923, escreveu críticas literárias, lecionou e proferiu palestras sobre temas ligados a literatura, ciência e psicologia em várias instituições. Nesta época, preocupava-se com questões ligadas à pedagogia uma vez que tinha como meta teórica estudar: como a cultura passa a fazer parte da vida de um indivíduo? Esta pergunta surgiu a partir de seu contato, no trabalho de formação de professores, com os problemas de crianças com defeitos congênitos, tais como: cegueira, retardo mental severo, afasia etc. Essa experiência o estimulou a encontrar alternativas que pudessem ajudar o desenvolvimento de crianças portadoras dessas deficiências. Na verdade, seu estudo sobre a deficiência tinha, não somente o objetivo de contribuir na reabilitação das crianças mas, também, significava uma excelente oportunidade de compreensão dos processos mentais humanos, assunto que viria a ser o centro de seu projeto de pesquisa.

A educação de crianças deficientes sensoriais e mentais ocupou um espaço importante em seus estudos. Vygotsky enfatizava a escola como sendo o próprio lugar da Psicologia, porque nela é que se realizam sistemática e intencionalmente as construções e a gênese das funções psicológicas superiores. Essas eram o resultado da influência cultural na aprendizagem e no desenvolvimento e só podiam ser explicadas (em sua origem), através de sua história, situando-as em seu contexto original. A escola e as situações informais de educação eram consideradas como o melhor laboratório da psicologia humana e não o contrário, como se pensava na época. Para Vygotsky, “o objetivo da própria psicologia era a melhoria e o aperfeiçoamento da educação real, enquanto essa constituía a premissa essencial de observação e o horizonte principal de tradução daquela”(1994,19).

Vygotsky, e seus colaboradores, Luria e Leontiev, faziam parte de um grupo de jovens intelectuais da Rússia Pós-Revolucão, trabalhando num clima de grande idealismo e efervescência intelectual. Na crença de uma nova sociedade, seu objetivo mais amplo era a busca do “novo”, compreendido como ligação entre a produção científica e o regime social recém-implantado. Nessa busca, a construção de uma nova psicologia era de fundamental importância, pois esta seria uma síntese entre as duas tendências predominantes na psicologia do início do século XX. De um lado, a psicologia constituía-se como ciência natural e experimental procurando explicar processos psicológicos elementares sensoriais e reflexos, tomando o homem basicamente como corpo. Esse modelo de psicologia deixava de abordar as funções psicológicas mais complexas do ser humano. De outro lado, havia a psicologia como ciência mental, que descrevia as propriedades dos processos psicológicos superiores, tomando o homem como mente, consciência e espírito. No entanto, essa segunda tendência, colocava a psicologia mais próxima da filosofia e das ciências humanas, tendo como princípio uma abordagem descritiva, subjetiva e dirigida a fenômenos globais, sem preocupação com a análise desses fenômenos em componentes simples. Essa psicologia mentalista não chegava a produzir descrições dos processos psicológicos complexos em termos aceitáveis para a ciência. Foi justamente na tentativa de superar essa crise da psicologia que Vygotsky e seus colaboradores buscaram uma abordagem alternativa, que possibilitasse uma síntese entre as duas abordagens predominantes naquele momento.
É importante destacar qual o significado de síntese para Vygotsky.
Para ele, a síntese de dois elementos não é a simples soma ou justaposição desses elementos, mas a emergência de algo novo, anteriormente inexistente. Esse componente novo não estava presente nos elementos iniciais: foi tornado possível pela interação entre esses elementos, num processo de transformação que gera novos fenômenos. Assim, uma abordagem que busca uma síntese para a psicologia integra, numa mesma perspectiva, o homem enquanto corpo e mente, enquanto ser biológico e social, enquanto membro da espécie humana e participante de um processo histórico.(Idem; 18).

Vygotsky e seus colaboradores foram profundamente influenciados pelo pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels. Segundo Teresa Rego (1998; 96),

“o pressuposto primeiro de toda a história humana é a existência de indivíduos concretos, que na luta pela sobrevivência organizam-se em torno do trabalho estabelecendo relações entre si e com a natureza. Apesar de fazer parte da natureza (é um ser natural, criado pela natureza e submetido às suas leis), o homem se diferencia dela na medida em que é capaz de transformá-la conscientemente segundo suas necessidade (...). Dessa forma, a compreensão do ser humano implica necessariamente na compreensão de sua relação com a natureza, já que é nesta relação que o homem constrói e transforma a si mesmo e a própria natureza, criando novas condições para sua existência”.

Portanto, é na dialética materialista que eles buscam subsídios para desenvolver seu método e elaborar hipóteses para explicar como ocorre o desenvolvimento das funções psicológicas superiores do comportamento humano. Em outras palavras, interessou-se por compreender os mecanismos psicológicos mais sofisticados, mais complexos, que são típicos do ser humano e que envolvem o controle consciente do comportamento, a ação intencional e planejada, o raciocínio abstrato, a consciência mediata, a liberdade do indivíduo em relação às características do momento e do espaço presentes.
Diferentemente dos outros animais, os homens têm a possibilidade de pensar em objetos ausentes, imaginar eventos nunca vividos, planejar ações a serem realizadas em momentos posteriores. Esse tipo de atividade psicológica é considerada superior na medida em que se diferencia de mecanismos mais elementares tais (a sucção do seio materno pelo bebê, por exemplo) ou processos de associação simples entre eventos (ato de evitar contato da mão com a chama de uma vela, por exemplo).

O desenvolvimento pleno do ser humano depende do aprendizado que realiza num determinado grupo social, a partir da interação com outros indivíduos da sua espécie. Vygotsky desenvolve a tese de que não há nada que exista no indivíduo que antes não tenha existido no contexto das relações sociais. Isto quer dizer que, por exemplo, um indivíduo criado numa comunidade, que desconhece o sistema de escrita e não tem nenhum tipo de contato com o ambiente letrado, não se alfabetizará. O mesmo ocorre com a aquisição da fala. O indivíduo só aprenderá a falar se pertencer a uma comunidade de falantes, ou seja, as condições orgânicas (possuir um aparelho fonador), embora necessárias, não são suficientes para que o indivíduo adquira a linguagem.
Nesta perspectiva, é o aprendizado que possibilita e movimenta o processo de desenvolvimento. O aprendizado pressupõe uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que as cercam. O aprendizado é o aspecto necessário e universal, uma espécie de garantia do desenvolvimento das características psicológicas especificamente humanas e culturalmente organizadas.

Vygotsky, numa reflexão sobre a interação desenvolvimento e aprendizagem, identifica dois níveis de desenvolvimento: um se refere às conquistas já efetivadas, que ele chama de nível de desenvolvimento real ou efetivo, e o outro, o nível de desenvolvimento potencial, que se relaciona às capacidades em vias de serem construídas. Segundo ele, o nível de desenvolvimento real pode ser entendido como referente àquelas conquistas que já estão consolidadas na criança, são aquelas funções ou capacidades que ela já aprendeu e domina, pois já consegue utilizar sozinha, sem assistência de alguém mais experiente da cultura (pai, mãe, professor, ou outra criança mais experiente). Este nível indica, assim, os processos mentais da criança que já se estabeleceram, ciclos de desenvolvimento que já se completaram.

O nível de desenvolvimento potencial também se refere àquilo que a criança já é capaz de fazer, só que mediante a ajuda de outra pessoa (adultos ou crianças mais experientes). Nesse caso, a criança realiza tarefas e soluciona problemas através do diálogo, da colaboração, da imitação, da experiência compartilhada e das pistas que lhes são fornecidas. Como, por exemplo, uma criança de cinco anos de idade pode não conseguir, numa primeira vez, realizar uma tarefa doméstica ou acadêmica sozinha, mas com a assistência de seu irmão mais velho ou mesmo de uma criança de sua idade mas que já tenha experiência pode vir a realizar a tarefa. Este nível é, para Vygotsky, bem mais indicativo de seu desenvolvimento mental do que aquilo que ela consegue fazer sozinha.

A distância entre aquilo que ela é capaz de fazer de forma autônoma (nível de desenvolvimento real) e aquilo que ela realiza em colaboração com os outros elementos de seu grupo social (nível de desenvolvimento potencial) caracteriza aquilo que Vygotsky chamou de “zona de desenvolvimento potencial ou proximal”.

O aprendizado é responsável por criar a zona de desenvolvimento proximal, na medida em que, em interação com outras pessoas, a criança é capaz de colocar em movimento vários processos de desenvolvimento que, sem a ajuda externa, seriam impossíveis de ocorrer. Esses processos se internalizam e passam a fazer parte das aquisições do seu desenvolvimento individual. É, por isso, que Vygotsky afirma: “aquilo que é zona de desenvolvimento proximal hoje será o nível de desenvolvimento real amanhã – ou seja, aquilo que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha amanhã”(1994;113).

Para ele, portanto, as funções psíquicas do indivíduo são constituídas na medida em que são utilizadas, sempre na dependência do legado cultural da humanidade. A construção das funções psíquicas da criança foi vinculada à apropriação da cultura humana, através de relações interpessoais dentro da sociedade à qual pertence. O desenvolvimento cognitivo foi compreendido como uma conseqüência do conteúdo a ser apropriado e das relações que ocorrem ao longo do processo de educação e ensino. A criança vai se desenvolvendo à medida em que, orientada por adultos ou companheiros, se apropria da cultura elaborada pela humanidade. Daí a importância dos pais, professores, adultos mais experientes, da comunidade e do conhecimento histórico já acumulado para a formação das crianças e da nova geração.

CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM EM VYGOTSKY

A linguagem foi uma preocupação central para Vygotsky. Interessava-lhe estudar a linguagem como constituidora do sujeito uma vez que ele trata a linguagem dentro do processo histórico de desenvolvimento da cultura e dos homens e mulheres. A linguagem, transformando-se através da história, passou de uma função de designação de objetos a uma função de acúmulo e transmissão de conhecimento entre os indivíduos e através das gerações.

Vygotsky conseguiu abordar a questão da linguagem em toda sua extensão, tratando-a como um objeto concreto de pesquisa e captando sua real importância no processo formação do gênero humano.
Tereza Rego, ao fazer uma reflexão sobre as relações entre pensamento e linguagem, resgata uma passagem do livro Pensamento e Linguagem de Vygotsky no qual ele afirma categoricamente:

“ a capacitação especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumento auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superarem a ação impulsiva, a planejarem a solução para um problema antes de sua execução e a controlarem seu próprio comportamento. Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem torna-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distiguindo-as dos animais”(Rego apud Vygotsky:1998;63).

Vygotsky trabalha com duas funções básicas da linguagem. A principal função é de intercâmbio social: é para se comunicar com seus semelhantes que o homem cria e utiliza os instrumentos da linguagem. Essa função de comunicação com os outros é bem visível no bebê que está começando a aprender a falar: ele não sabe ainda articular as palavras, nem é capaz de compreender o significado preciso das palavras utilizadas pelos adultos, mas consegue comunicar seus desejos e seus estados emocionais aos outros através de sons, gestos e expressões. É a necessidade de comunicação que impulsiona, inicialmente, o desenvolvimento da linguagem.

Para que a comunicação com outros indivíduos seja possível de forma mais sofisticada, não basta, entretanto, que a pessoa manifeste, como o bebê, estados gerais como desconforto ou prazer. É necessário que sejam utilizados signos, compreensíveis por outras pessoas, que traduzam idéias, sentimentos, vontades, pensamentos, de forma bastante precisa. Como cada indivíduo vive sua experiência pessoal de modo muito complexo e particular, o mundo da experiência vivida tem que ser extremamente simplificado e generalizado para poder ser traduzido em signos que possam ser transmitidos a outras.

É esse fenômeno que gera a segunda função da linguagem: a de pensamento generalizante. A linguagem ordena o real, agrupando todas as ocorrências de uma mesma classe de objetos, eventos, situações, sob uma mesma categoria conceitual.

Os homens ao chamar determinado objeto de carro o que se faz na realidade é classificar esse objeto na categoria “carro” e, portanto, agrupando-o com outros elementos da mesma categoria e, ao mesmo tempo, diferenciando-o de elementos de outras categorias. Um carro particular é parte de um conjunto abstrato de objetos que são todos membros da mesma categoria e distingue-se dos membros das categorias “mesa”, “cavalo”, “homem”, etc.

É essa função de pensamento generalizante que torna a linguagem um instrumento de pensamento: a linguagem fornece os conceitos e as formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento. A compreensão do pensamento e da linguagem é, pois, essencial para compreensão do funcionamento psicológico do ser humano.

Antes do pensamento e a linguagem se associarem na criança pequena, existe uma fase pré-verbal no desenvolvimento do pensamento e uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da linguagem. Antes de dominar a linguagem, a criança demonstra capacidade de resolver problemas práticos, de utilizar instrumentos e meios indiretos para conseguir determinados objetivos. Ela é capaz, por exemplo, de subir numa cadeira para alcançar um brinquedo, ou de dar uma volta num sofá para pegar uma bola que caiu atrás dele. Portanto, a criança pré-verbal exibe essa espécie de inteligência prática, que permite a ação no ambiente sem a mediação da linguagem.

Nessa fase de seu desenvolvimento, a criança, embora não domine a linguagem enquanto sistema simbólico, já utiliza manifestações verbais. O choro, o riso e o balbucio da criança pequena têm clara função de alívio emocional, mas também servem como meio de contato social, de comunicação difusa com outras pessoas. Assim, num determinado momento do desenvolvimento da criança (por volta dos dois anos de idade) o percurso do pensamento se encontra com o da linguagem e inicia-se uma nova forma de funcionamento psicológico: a fala torna-se intelectual, com função simbólica generalizante, e o pensamento torna-se verbal, mediados por significados dados pela linguagem.

Enquanto do desenvolvimento filogenético (gênero humano) foi a necessidade de intercâmbio dos indivíduos durante o trabalho que impulsionou a vinculação dos processos de pensamento e linguagem, na ontogênese (história do indivíduo) esse impulso é dado pela própria inserção da criança num grupo social. A interação com membros mais maduros da cultura, que já dispõem de uma linguagem mais estruturada, é que vai provocar o salto qualitativo para o pensamento verbal.

Na análise que Vygotsky faz das relações entre pensamento e linguagem, a questão do significado ocupa lugar central. O significado é um componente essencial da palavra é, ao mesmo tempo, um ato de pensamento, pois o significado de uma palavra já é, em si, uma generalização. Isto é, no significado da palavra é que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal. É no significado que se encontra a unidade das duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante. São os significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se num filtro através do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e agir sobre ele.

Os significados são construídos ao longo da história dos grupos humanos, com base nas relações dos homens com o mundo físico e social em que vivem, eles estão em constante transformação. A idéia da transformação dos significados das palavras está relacionada a um outro aspecto da questão do significado. Vygotsky distingue dois componentes do significado da palavra: o significado propriamente dito e o sentido. O significado propriamente dito refere-se ao sistema de relações objetivas que se formou no processo de desenvolvimento da palavra, consistindo num núcleo relativamente estável de compreensão da palavra, compartilhado por todas as pessoas que a utilizam. O sentido, por sua vez, refere-se ao significado da palavra para cada indivíduo, composto por relações que dizem respeito ao contexto de uso da palavra e às vivências afetivas do indivíduo.

A palavra carro, por exemplo, tem o significado objetivo de “veículo de quatro rodas, movido a combustível, utilizado para transporte de pessoas”. O sentido da palavra carro, entretanto, variará conforme a pessoa que a utiliza e o contexto em que é aplicada. Para o motorista de táxi significa um instrumento de trabalho; para o adolescente que gosta de dirigir pode significar forma de lazer; para um pedestre que já foi atropelado o carro tem um sentido ameaçador, que lembra uma situação desagradável, e assim por diante. O sentido da palavra liga seu significado objetivo ao contexto de uso da língua e aos motivos afetivos e pessoais de seus usuários. Portanto, relaciona-se com o fato de que a experiência individual é sempre mais complexa do que a generalização contida nos signos.

Vygotsky afirma que não é somente através da aquisição da linguagem falada que o indivíduo adquire formas mais complexas de se relacionar com o mundo que o cerca. O aprendizado da linguagem escrita representa um novo e considerável salto no desenvolvimento da pessoa. O domínio desse sistema complexo de signos fornece novo instrumento de pensamento (na medida em que aumenta a capacidade de memória, registro de informações, etc.), propicia diferentes formas de organizar a ação e permite um outro tipo de acesso ao patrimônio da cultura humana (que se encontra registrado nos livros e outros portadores de textos). Enfim, promove modos diferentes e ainda mais abstratos de pensar, de se relacionar com as pessoas e com o conhecimento.

Nas crianças pequenas, o pensamento evolui sem a linguagem. Os primeiros balbucios se formam sem o pensamento e têm como objetivo atrair a atenção do adulto. Percebe-se, assim, a presença de uma função social da fala, desde os primeiros meses da criança. De acordo com Vygotsky, pode-se estabelecer no desenvolvimento da fala da criança uma fala pré-intelectual e no desenvolvimento de seu pensamento, um pensamento pré-linguístico. Aos dois anos de idade, o pensamento pré-linguístico e a linguagem pré-intelectual se encontram e se juntam, surgindo um novo tipo de organização lingüístico-cognitivo, o pensamento se torna verbal e a linguagem racional. Desse momento em diante, a criança passa a sentir a necessidade das palavras, tenta aprender os signos: é a descoberta da função simbólica da palavra. Para compreender o pensamento verbal é necessária a compreensão do significado das palavras. O significado é um fenômeno da fala: palavras sem significado é um som vazio. È um fenômeno do pensamento: o significado de cada palavra é uma generalização, um conceito, que por sua vez são atos do pensamento.

O significado das palavras evolui. Na evolução histórica da linguagem mudam a própria estrutura do significado e sua natureza psicológica. O pensamento verbal, partindo de generalizações primitivas, chega ao nível dos conceitos mais abstratos. Não é o conteúdo de uma palavra que se altera, mas o modo pelo qual a realidade é refletida em uma palavra. A relação pensamento e palavra tem que ser considerada como um processo vivo: o pensamento nasce através das palavras. A relação pensamento e palavra não é algo já formado e constante, mas surge ao longo do desenvolvimento e se modifica. O pensamento não é simplesmente expresso em palavras: é por meio delas que ele passa a existir.

A PRÉ-HISTÓRIA DA LINGUAGEM ESCRITA NA CRIANÇA

Ao analisar os modelos de aquisição da linguagem escrita adotados pelas escolas de sua época, Vygotsky constatou que esses modelos concebiam a escrita como uma atividade perceptivo-motora na qual se partia ora da discriminação perceptiva das letras passando, logo em seguida, às sílabas, palavras e frases acompanhadas pelo processo de reprodução motora das representações gráficas. Segundo ele, esses modelos adotados pelas escolas não levavam em consideração as concepções que as crianças tinham a respeito desse sistema particular de símbolos. As crianças eram vistas como uma tabula rasa que nada tinham a dizer a respeito dessa questão.

Segundo ele, as escolas ensinam “ as crianças a desenhar letras e construir palavras com ela, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal”(1994;139).

Essa situação pode ser explicada por razões históricas, pois a pedagogia prática não desenvolveu um procedimento científico para o ensino da linguagem escrita às crianças, pois esta é vista, geralmente, como um treinamento artificial, um ato puramente perceptivo-motor. Ao invés de se fundamentar nas necessidades naturalmente desenvolvidas das crianças e na sua própria atividade, a escrita lhe é imposta de fora, vindo das mãos dos professores. É importante frisar aqui que essa constatação se deu entre as décadas de 20 e 30 do século XX.

É essa postura escolar frente à linguagem escrita que Vygotsky critica. A escrita é concebida como uma habilidade perceptivo-motora e não como um sistema particular de símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo desenvolvimento cultural da criança. A linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que designam os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das relações e entidades reais. O domínio deste sistema de signos não pode se dá de maneira mecânica e externa, pois o mesmo é o culminar, na criança, de um processo de desenvolvimento de funções complexas. Assim, é necessário compreender toda a história do desenvolvimento dos signos nas crianças. Essa história é plena de descontinuidades, uma vez que pode haver avanços e retrocessos e não um processo evolutivo, gradativo como parece à primeira vista. Portanto, a psicologia infantil não possui ainda, uma visão convincente do desenvolvimento da linguagem escrita como um processo histórico, como um processo unificado de desenvolvimento.

O primeiro estágio do desenvolvimento da escrita da criança, começa muito antes da primeira vez em que o professor coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras, sílabas, palavras e escrever seus primeiros exercícios escolares em seu caderno de anotações. Quando uma criança entra na escola, ela já adquiriu um conjunto aptidões, habilidades e destrezas que a habilitará a aprender a escrever em um tempo relativamente curto. Ela aprendeu e assimilou um número significativo de estratégias que a possibilita aprender com mais facilidade o conceito e a técnica da escrita propriamente dita. Na concepção de Vygotsky, são técnicas primitivas semelhantes àquilo que, convencionalmente, chamamos de escrita e capazes de, até mesmo, desempenhar funções semelhantes, mas que são perdidas assim que a escola proporciona à criança um sistema de signos padronizado e econômico, culturalmente elaborado. Essa técnica primitiva é o que Vygotsky denomina de “pré-história da linguagem escrita”.

Para ele, é necessário investigar a fundo este período inicial do desenvolvimento infantil, deslindar os caminhos ao longo dos quais a escrita se desenvolveu em sua pré-história, explicar detalhadamente as circunstâncias que tornaram a escrita possível para a criança e os fatores que proporcionaram as forças motoras desse desenvolvimento e, finalmente, descrever os estágios através dos quais a criança passa para desenvolver as técnicas primitivas de escrita. Assim,

“a primeira tarefa de uma investigação científica é revelar essa pré-história da linguagem escrita; mostrar o que leva as crianças a escrever; mostrar os pontos importantes pelos quais passa esse desenvolvimento e qual a sua relação com o aprendizado escolar. Essa história começa com o aparecimento do gesto como um signo visual para criança”(1994;141).

Gestos e signos visuais

O gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança. Eles são a escrita no ar, e os signos escritos são simples gestos que foram fixados. Existem dois outros domínios onde os gestos estão ligados aos dos signos escritos. O primeiro é o dos rabiscos das crianças. Freqüentemente, as crianças usam a dramatização, demonstrando por gestos o que elas deveriam mostrar por desenhos. Uma criança que tem de desenhar o ato de correr, por exemplo, começa por demonstrar o movimento com os dedos, encarando os traços e pontos resultantes no papel como uma representação do correr. Ou seja, esse ato passa a ser representado como um conjunto de pontos e traços. Em geral, tende-se a ver os primeiros rabiscos e desenhos das crianças mais como gestos do que como desenho no verdadeiro sentido da palavra. Também se imputa ao mesmo fenômeno o fato de que as crianças, ao desenharem objetos complexos, não o fazerem pelas suas partes componentes e sim pelas suas qualidades gerais. Elas não desenham, mas indicam, e o lápis meramente fixa o gesto indicativo.

O desenvolvimento do simbolismo no brinquedo

A segunda esfera de atividades que une os gestos e a linguagem escrita é a dos jogos das crianças. Alguns objetos podem, de pronto, denotar outros, substituindo-os e tornando-se seus signos. O importante é a utilização de alguns objetos como brinquedos e a possibilidade de executar, com eles o gesto representativo. Essa é a chave para toda a função simbólica do brinquedo das crianças. O próprio movimento da criança, seus próprios gestos, é que atribuem a função de signo ao objeto e lhe dão significado. Assim, o brinquedo simbólico da criança pode ser entendido como um sistema muito complexo de “fala” através de gestos que comunicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar. Brincando, as crianças representam as coisas em pessoas. A similaridade perceptiva dos objetos não tem um papel considerável para a compreensão da notação simbólica. O que importa é que os objetos admitam o gesto apropriado e possam funcionar como um ponto de aplicação dele. Os objetos cumprem uma função de substituição. Assim, as crianças descobrem que os objetos não só podem indicar as coisas que eles estão representando como podem, também, substituí-las. Um objeto adquire uma função de signo, com uma história própria ao longo do desenvolvimento, tornando-se, independente dos gestos das crianças. Desse modo, a brincadeira do faz-de-conta é de fundamental importância para o desenvolvimento da linguagem escrita – que é um sistema de simbolismos de segunda ordem. Os primeiros desenhos surgem como resultado de gestos manuais e o gesto, constitui a primeira representação do significado. A representação simbólica no brinquedo é, essencialmente, uma forma particular de linguagem num estágio precoce, atividade essa que leva, diretamente, à linguagem escrita.

O desenvolvimento do simbolismo no desenho

Inicialmente a criança desenha de memória. Elas não desenham o que vêem, mas sim o que conhecem. Com frequência, os desenhos infantis não só não têm nada a ver com a percepção real do objeto como, muitas vezes, contradizem essa percepção. Elas não se preocupam muito com a representação; são muito mais simbolistas do que naturalistas e não estão, de maneira alguma, preocupadas com a similaridade completa e exata, contentando-se com indicações apenas superficiais. O desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal. Nesse sentido, os esquemas que caracterizam os primeiros desenhos infantis lembram conceitos verbais que comunicam somente os aspectos essenciais dos objetos. Assim, o desenho das crianças pode ser visto como um estágio preliminar no desenvolvimento da linguagem escrita. Mesmo sendo capaz de perceber a similaridade no desenho, ela o encara como um objeto em si mesmo, similar a ou do mesmo tipo de objeto, e não como uma representação ou símbolo.
A representação simbólica primária deve ser atribuída à fala e que é utilizando-a como base que todos os outros sistemas de signos são criados. O desenho acompanha obedientemente a frase e a linguagem falada permeia todo o desenho da criança. Esse processo, como os anteriores, é decisivo no desenvolvimento da escrita e do desenho na criança.

O simbolismo na escrita

Os sinais escritos constituem símbolos de primeira ordem, denotando diretamente objetos ou ações e que a criança terá de evoluir no sentido do simbolismo de segunda ordem, que compreende a criação de sinais escritos representativos dos símbolos falados das palavras. Para isso a criança precisa fazer uma descoberta básica – a de que se pode desenhar, além de coisas, também a fala. Foi essa descoberta, e somente ela, que levou a humanidade ao brilhante método da escrita por letras e frases; a mesma descoberta conduz às crianças à escrita literal. Do ponto de vista pedagógico essa transição deve ser propiciada pelo deslocamento da atividade da criança do desenhar coisas para o desenho da fala. O desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças se dá pelo deslocamento do desenho de coisas para o desenho de palavras. De uma maneira ou de outra, vários métodos existentes de escrita realizam isso. Muitos deles empregam gestos auxiliares como um meio de unir o símbolo falado ao símbolo escrito; outros empregam desenhos que representam os objetos apropriados. O segredo do ensino da linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural. Uma vez que ela é atingida, a criança passa a dominar o princípio da linguagem escrita, e resta então, simplesmente, aperfeiçoar esse método. O brinquedo de faz-de-conta, o desenho e a escrita devem ser vistos como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento da linguagem escrita. Basta imaginarmos as enormes transformações que ocorrem no desenvolvimento cultural das crianças em consequência do domínio do processo de linguagem escrita e da capacidade de ler, para que nos tornemos cientes de tudo que os gênios da humanidade criaram no universo da escrita.

Implicações práticas

Após descrever essa pré-história da linguagem escrita na criança, Vygotsky, considera que seria de fundamental importância transferir o ensino da escrita para a pré-escola. Se as crianças mais novas são capazes de descobrir a função simbólica da escrita, então o ensino da escrita deveria ser responsabilidade da educação pré-escolar. O desenvolvimento entre três e seis anos envolve não só o domínio dos signos arbitrários como, também, o progresso na atenção e na memória. No entanto, a leitura e a escrita devem ser algo que a criança necessite. A escrita precisa ser ensinada como uma atividade cultural complexa que envolve significados e sentido e não uma atividade perceptivo-motora esvaziada de conteúdos significativos. Portanto, ensinar a escrita nos anos pré-escolares impõe, necessariamente, uma segunda demanda: a escrita deve ser relevante à vida.

Uma segunda conclusão decorre da anterior: a escrita deve ser significativa para as crianças, de que uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida. Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolverá não como um hábito de dedos e mãos, mas como uma forma nova complexa de linguagem.

A terceira conclusão é a de que é necessário a escrita ser ensinada de maneira natural. Dessa forma, uma criança passa a ver a escrita como um momento natural do seu desenvolvimento, e não como um treinamento imposto de fora para dentro. O melhor método é aquele em que as crianças não aprendam a ler e a escrever, mas sim, descubram essas habilidades durante situações de brinquedo. Para isso é necessário que as letras se tornem elementos da vida das crianças, da mesma maneira como, por exemplo, a fala. Métodos naturais de ensino da leitura e da escrita implicam operações apropriadas sobre o meio ambiente das crianças. Elas devem sentir a necessidade do ler e do escrever no seu brinquedo. É fundamental ensinar às crianças a linguagem escrita, e não apenas a escrita de letras.

BIBLIOGRAFIA

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1 Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA

quarta-feira, 8 de abril de 2009


A DIFERENÇA BÁSICA ENTRE OS HOMENS E OS OUTROS ANIMAIS1
JOSENILDO SILVA DE SOUZA2

Introdução

O presente texto tem como objetivo apresentar a tese de Marx e Engels a respeito da diferença básica entre os homens e os outros animais. Essa tese é uma reflexão desenvolvida pelos referidos autores no livro A Ideologia Alemã publicada pela primeira vez em 1844. Nela, os autores discutem a tese dos filósofos, anteriores a eles, de que o que diferencia os homens dos outros animais é a razão. Para Marx e Engels, o que diferencia os homens dos outros animais é a capacidade que os homens têm de produzir os meios necessário a sua própria sobrevivência. É essa tese que nos propomos apresentar de maneira resumida.

Os homens e a produção dos próprios meios de sobrevivência

No livro A Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que o primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro ato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza. Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal.
Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material.
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que tem de reproduzir. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção.

A produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. Os homens são os produtores de suas idéias etc, mas os homens reais e ativos, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real.

Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõem-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida.

Os homens ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam, também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos do seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.

O primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto de toda história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder fazer história. Mas para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje como a milhares de anos, deve ser cumprido todos dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos.

O segundo ponto é que, satisfeita esta primeira necessidade, a ação de satisfaze-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico.

A terceira condição é que os homens, que diariamente renovam sua própria vida, começam a criar outros homens, a procriar: é a relação entre homem e mulher, entre pais e filhos, a família. A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, aparece agora como dupla relação: de um lado, como relação natural, de outro como relação social – social no sentido de que se entende por isso a cooperação de vários indivíduos, quaisquer que sejam as condições, o modo e a finalidade.

Desde o início mostra-se, portanto, uma conexão materialista dos homens entre si, condicionada pelas necessidades e pelo modo de produção, conexão esta que é tão antiga quanto os próprios homens – que toma incessantemente, novas formas e apresenta, portanto, uma história sem que exista quaisquer absurdo político ou religioso que também mantenha os homens unidos.

A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existe também para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens.

A consciência, portanto, é desde o início um produto social, e continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é, naturalmente, antes de mais nada mera consciência do meio sensível mais próximo e consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas situadas fora do indivíduo que se torna consciente; é ao mesmo tempo consciência da natureza que, a princípio, aparece aos homens como um poder completamente estranho, onipresente, inexpugnável com o qual os homens se relacionam de maneira puramente animal e perante o qual se deixam impressionar como o gado; é, portanto, uma consciência puramente animal da natureza. O homem não se limita a imediaticidade das situações com que se depara, já que produz universalmente (para além de sua sobrevivência pessoal e de sua prole).

A atividade dos animais, em relação à natureza, é biologicamente determinada. A sobrevivência da espécie se dá com base em sua adaptação ao meio. Por mais sofisticada que possam ser as atividades dos animais, elas ocorrem com pequenas modificações na espécie, já que a transmissão da experiência é feita quase que exclusivamente pelo código genético.

Os instintos dos animais não vacilam diante das estimulações, dispondo de respostas prontas e acabadas a tudo aquilo que, vindo do meio ambiente ou do interior do organismo, os afeta gerando algum incômodo ou produzindo um estado de excitação. Os animais não são tomados por vacilações quando afetados por algum acontecimento do seu meio nem se consomem em dúvidas existenciais. O animal sabe comer quando tem fome, sabe se defender quando está em perigo, sabe procurar um parceiro para se acasalar; enfim, dispõe de um repertório de comportamentos, a maioria herdados, que o habilitam para a vida.

A ação humana, por sua vez, não é biologicamente determinada, mas se dá principalmente pela incorporação das experiências e conhecimentos produzidos e transmitidos de geração à geração. A transmissão dessas experiências e conhecimentos permite que a nova geração não volte ao ponto de partida da que a precedeu. A esse processo, Marx e Engels denominam de apropriação.
As características do gênero humano não são transmitidas pela herança genética, porque não se acumulam no organismo humano. As características do gênero humano foram criadas e desenvolvidas ao longo do processo histórico, através do processo de objetivação, gerado a partir da apropriação da natureza pelo homem. Cada indivíduo tem que se apropriar de um mínimo desses resultados da atividade social, exigido pela sua vida no contexto social do qual faz parte.
Quais os componentes da generacidade farão parte desse mínimo indispensável à própria sobrevivência do indivíduo, dependerá das circunstâncias concretas de sua vida, especialmente aquelas de seu meio social imediato.

A atuação do homem diferencia-se da do animal porque, ao alterar a natureza, por meio de sua ação, torna-a humanizada. Ao mesmo tempo, o homem altera a si próprio por intermédio dessa interação; ele vai se constituindo, vai se diferenciando cada vez mais das outras espécies animais.
É o processo de produção da existência humana. A alimentação reflete as mudanças ocorridas no homem. O homem cria novas necessidades. O homem não só cria instrumentos como também desenvolve idéias (conhecimentos, valores, crenças) e mecanismos para sua elaboração (desenvolvimento do raciocínio, planejamento). Por mais sofisticadas que possam parecer, as idéias são produtos de e exprimem as relações que o homem estabelece com a natureza na qual se insere. É nesse processo que o homem adquire a consciência de que está transformando a natureza para adaptá-la as suas necessidades. A esse processo Marx e Engels denominam de objetivação.

O processo de produção da existência humana é um processo social. O ser humano não vive isoladamente, ao contrário depende de outros para sobreviver. Há interdependência dos seres humanos em todas as formas da atividade humana. Quaisquer que sejam suas necessidades – da produção de bens à elaboração de conhecimentos, costumes, valores ... – elas são criadas, atendidas e transformadas a partir da organização e do estabelecimento de relações entre os homens.

Na base de todas as relações humanas, determinando e condicionando a vida, está o trabalho. A forma de organizar o trabalho determina a relação entre os homens, inclusive quanto a propriedade dos instrumentos e materiais utilizados e à apropriação do produto do trabalho.

As relações de trabalho – forma de dividi-lo e organizá-lo – ao lado do nível técnico dos instrumentos de trabalho, dos meios disponíveis para a produção de bens materiais, compõem a base econômica de uma dada sociedade.

As idéias, como os produtos da existência humana, sofrem as mesmas determinações históricas. As idéias são as expressões das relações e atividades reais dos homens, estabelecidas no processo de produção de sua existência. Elas são a representação daquilo que o homem faz, da sua maneira de viver, da forma com se relaciona com outros homens, do mundo que o circunda e das suas próprias necessidades. No entanto, aquilo que o homem faz, acredita, conhece e pensa sofre interferência também das idéias, representações anteriormente elaboradas.

Dentre as idéias que o homem produz, parte delas constitui o conhecimento referente ao mundo. O conhecimento humano, em suas diferentes formas (senso comum, científico, teológico, filosófico, estético, etc), exprime condições materiais de um dado momento histórico.

A linguagem enquanto um sistema simbólico surge para agilizar a comunicação entre os homens, substituindo e aperfeiçoando outros sistemas gestuais mais concretos. Os nomes que damos aos objetos, às experiências e às situações nos permitem ter sempre presente na consciência a sua representação, podendo assim, quando necessitarmos, passá-los aos nossos semelhantes sem a presença física desses objetos e situações. A linguagem, enquanto sistema de símbolos, permite ir além da realidade vivida, transpondo as coisas para um outro plano, constituindo um nível intermediário entre o dado imediato, singular e empírico e a idéia abstrata e universal, enquanto pura representação mental desse dado, pela consciência subjetiva.

O processo de formação do gênero humano na concepção de Marx e Engels se dá mediante o trabalho, atividade vital humana, pois a mera sobrevivência física dos indivíduos e sua reprodução biológica através do nascimento de seres humanos, assegura, apenas, a continuidade da espécie biológica, mas não assegura a reprodução do gênero humano, com suas características historicamente constituídas. É na criação de instrumentos e signos que os homens vão aprimorando suas relações com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo.

O instrumento é um elemento interposto entre o trabalhador e o objeto de seu trabalho, ampliando as possibilidades de transformação da natureza. O instrumento é feito ou buscado especialmente para um certo objetivo. Ele carrega consigo, portanto, a função para a qual foi criado e o modo de utilização desenvolvido durante a história do trabalho coletivo. É, pois, um objeto social e mediador da relação entre o indivíduo e o mundo.

A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc) é análoga a invenção e uso de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento de atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho. Os instrumentos, porém, são elementos externos ao indivíduo, voltado para fora dele. Sua função é provocar mudanças nos objetos, controlar processos da natureza. Os signos, por sua vez, também chamados por Vygotsky de instrumentos psicológicos são orientados para o próprio sujeito, para dentro do indivíduo. Dirigem-se ao controle de ações psicológicas, seja do próprio indivíduo, seja de outras pessoas. São ferramentas que auxiliam nos processos psicológicos e não nas ações concretas, como os instrumentos.

BIBLIOGRAFIA

MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1990.

1Texto elaborado para a disciplina Estudos Orientados II: Educação, Trabalho e Afetividade
2Professor do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA